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A loucura de Joyce


Enquanto a crítica literária se esforça, até hoje, para decifrar o texto joyceano, minha tese é que Lacan preferiu extrair o que esse texto cifra: a loucura de Joyce. Para delinear — e mesmo elucidar — esse enigma, procurei recriar os prováveis rastros que orientaram Lacan em sua formulação, em uma espécie de re-leitura das possíveis passagens que ele teria assinalado, por exemplo, nos seus exemplares da biografia assinada por Ellmann, da correspondência escrita e recebida por Joyce e dos relatos memorialísticos legados por um dos irmãos e por diversos amigos do escritor. Autorizei-me, então, a criar um acesso (ficcional) à biblioteca de Lacan, ressaltando o que poderá ter lhe servido de guia (inclusive documental) para a formulação do enigma sobre a loucura de Joyce .
Trata-se de um enigma, a loucura de Joyce, porque, na fortuna crítica que tive oportunidade de investigar, na célebre biografia que Ellmann dedicou a Joyce e, ainda, em toda uma série de diários, memórias ou ensaios onde seu irmão Stanislaus e amigos bem íntimos procuram evocar os trabalhos e os dias desse escritor, não há indicações, tampouco afirmações precisas, se Joyce teria sido mesmo acometido por algum tipo de loucura.
De fato, diferente do que aconteceu com um Holdërlin ou com um Artaud, não há — nos principais relatos extraídos da vida de Joyce — qualquer passagem que nos permita constatar um desencadeamento da loucura. E como a psicanálise de orientação lacaniana nos permite apreender a existência de loucuras não-desencadeadas, é importante salientar que, pelo menos a princípio, na imensa quantidade de dados que se acumulou sobre a vida de Joyce, além de não haver qualquer sinal de desencadeamento, as poucas indicações relativas à possível estrutura psicótica de Joyce podem ser afastadas, com maior ou menor intensidade, em nome de outras justificativas, diferentes daquelas atribuíveis à loucura e mais próximas do rigor com o qual um artista trata a sua obra. Contudo, é exatamente ao uso joyceano da obra que Lacan vai recorrer para interrogar sobre a loucura desse escritor, mostrando-nos por que não houve desencadeamento e por que as possíveis indicações de uma estrutura psicótica, em Joyce, são de difícil constatação, ainda que estejam presentes.
Destacada pelo próprio Ellmann, a "tendência ao litígio" que, por vezes, mobilizava Joyce poderia, de um modo geral, ser aproximada da querulência, presente em delírios de perseguição ligados, predominantemente, "a uma ocasião exterior determinada, a um certo prejuízo real ou suposto" que justificaria a insistência psicótica em algumas queixas ou reivindicações. No caso da vida de Joyce, os principais "litígios" em que ele se envolveu tiveram sempre sua obra como causa e, nesse viés, mesmo que fossem favorecidos por alguma dimensão patológica, não podem ser dissociados da luta de um escritor para defender o rigor e a liberdade de sua criação. Joyce jamais conseguiu publicar seus livros sem algum tipo de controvérsia, de querela ou de disputa. E, uma vez envolvido nessas batalhas, antecipando algumas modernas "estratégias de marketing", tentava extrair, dessa guerra enfrentada em nome da escrita, o máximo de vantagem para a difusão de sua obra .
Por outro lado, uma certa configuração persecutória não deixa de organizar o célebre exílio de Joyce com relação à Irlanda, sua terra natal, pois o escritor, baseando-se em alguns acontecimentos relacionados com ele ou mesmo com sua obra, mantinha firmemente a crença de que era persona non grata em seu próprio país. Afinal, a persistência e a intensificação dessa crença de que seria agredido, caso um dia retornasse à Irlanda, passaram a organizar e a reforçar o exílio de Joyce pelo resto de sua vida. Ele era tão afetado por essa posição de "perseguido" que, certa vez, chegou mesmo a interpretar que o envolvimento circunstancial de sua esposa e seus filhos em um ataque durante a Guerra Civil Irlandesa havia sido não um acontecimento decorrente de um conflito social, mas algo que era "realmente dirigido dirigido contra ele próprio" .
Ao longo da biografia empreendida por Ellmann e de algumas cartas escritas por Joyce, encontramos, também, passagens referentes a crises depressivas vivenciadas com maior ou menor intensidade. Ainda que a presença da depressão em um sujeito não seja, necessariamente, um indicativo de uma estrutura psicótica, a loucura pode muito bem, em alguns casos, tomar essa forma. Entretanto, se nos pautamos pelos poucos registros que temos das crises depressivas sofridas por Joyce, verificamos que elas, assim como a maioria dos litígios em que se envolveu, estava m relacionadas, quase sempre, com alguma conturbação capaz de ameaçar a invenção que ele se fazia como um autor.
Os episódios depressivos mais intensos coincidiram com as resistências e reservas suscitadas pela escritura de Finnegans Wake, desde sua versão prévia intitulada Working in progress. Joyce, sentido-se pressionado até mesmo por seu protetor e irmão Stanislaus e por amigos fiéis como Erza Pound e Harriet Shaw Weaver, vai produzir o que o próprio Ellmann chamou de "uma das idéias mais estranhas da história literária" : começou a considerar seriamente a possibilidade de que um outro escritor, James Stephens, ficasse encarregado de finalizar-lhe o livro . Os motivos para essa escolha lhe conferem ainda mais estranheza: James Stephens é poeta e, assim como o próprio Joyce, havia nascido em Dublin; "JJ e S", ou seja, as iniciais presentes, respectivamente, nos nomes de James Joyce e de James Stephens, evocariam a forma como seus patrícios coloquialmente designam "o whisky irlandês John Jameson and Son" e comporiam "uma sigla encantadora abaixo do título" do livro , além de permitirem uma combinação entre o nome próprio de Joyce e aquele de Stephen, personagem que perfaz um trajeto bastante considerável ao longo da escritura joyceana.
A partir de 1932, ou seja, depois da morte do pai — cujo impacto foi nuançado pela alegria com o nascimento do neto —, um outro fator passa abalar Joyce radicalmente: o desencadeamento e o progressivo agravamento da loucura de Lucia, sua filha. O escritor preferia atribuir tal perturbação à vida nômade e à variedade de línguas que ele próprio impôs aos seus familiares, por haver escolhido o exílio e a dedicação integral à literatura . Joyce preferia dizer que sua filha era, na verdade, portadora de uma incrível clarividência e, além de oferecer provas desse poder, também o detectava no próprio título de Finnegans Wake que profetizava o despertar da Finlândia para o mundo e em algumas passagens de Ulisses .
No Seminário intitulado Le sinthome, Lacan menciona esse "diagnóstico" que Joyce deu à filha, mas prefere destacar o quanto o próprio Joyce está implicado nessa forma de lidar com a loucura da Lucia: "ele lhe atribui alguma coisa que está no prolongamento do… seu próprio sintoma" . Importante notar que, ao se referir à relação entre Joyce e Lucia, é o termo "sintoma" (symptôme) que Lacan utiliza. Não há, portanto, ao contrário do que se processa em várias passagens e no próprio título desse Seminário, a convocação da grafia antiga desse termo, ou seja, Lacan não evoca, nesse contexto, o termo "sinthoma" [sinthome]: não se trata, aqui, da amarração tramada na obra ou, em um contexto mais amplo, onde não encontraríamos apenas o trabalho joyceano, não se trata do que se depura como o mais exclusivo, o mais individual em um sintoma. É justamente a ausência de exclusividade que, a meu ver, possibilita o prolongamento de um sintoma de alguém no sintoma de um outro. Assim, a loucura ou, joyceanamente falando, a "clarividência" de Lucia está no prolongamento de um sintoma que afeta seu pai. Este sintoma de Joyce, segundo Lacan, é o seguinte: "quanto à palavra, alguma coisa lhe era imposto" . Ora, não se trata de um sintoma exclusivo desse escritor porque a imposição da palavra é, conforme Lacan mesmo nos ensina, um desdobramento da dimensão parasita própria à palavra que, enquanto tal, aflige todo ser humano.
Apesar de não ser mencionado por Lacan, me parece decisivo destacar um dado que reforça esse prolongamento que se realiza entre a "clarividência" atribuída a Lucia e as palavras impostas a Joyce. Ao dar à filha, como primeiro nome, "Lucia", o escritor associava sua escolha à Santa que é padroeira da visão — Santa Luzia ou, em italiano (que foi a língua de onde Joyce derivou o nome dos filhos) — Santa Lucia. Assim, a "visão" se impôs à filha de Joyce desde o nascimento e, no auge de sua loucura, essa imposição vai lhe retornar, veiculada novamente por seu pai, através da atribuição que ele, levando a sério o que ela dizia, começou a lhe fazer de uma vidência, cuja clareza não estava menos inscrita no nome escolhido para a filha, pois Lucia , em italiano, difunde-se, também, como luz. É também notável que a loucura de Lucia torna-se manifesta e se agrava no mesmo período em que a saúde dos olhos de Joyce piora consideravelmente e que ele se envereda, cada vez mais, por esse "livro da noite" intitulado como Finnegans Wake.
Todos esses acontecimentos, que giram em torno do "diagnóstico" joyceano de Lucia, podem ser assim entrelaçados: um pai tem sua visão e seu trabalho invadidos por uma treva espessa, mas consegue vislumbrar sua frágil filha perdida nas manifestações não menos obscuras das palavras impostas e, para tentar salvá-la da noite da loucura, para tentar redimir sua falta enquanto pai, Joyce — ao modo de um Orfeu com sua Eurídice —recorre à palavra, cuja dimensão impositiva também o afeta, mas encontrando anteparo em sua obra. Esse pai, consumido pela dor de Lucia e quase cego, busca, mais uma vez, a exatidão fugurante conquistada no uso rigoroso da escritura: nomeia o estado da filha com um desdobramento do nome que já havia lhe dado —Lucia, a Clarividente — e essa renomeação não deixa de ser, também, um apelo frente à escuridão que, tal como sua obra, progressivamente toma-lhe conta dos olhos porque, nesse mesmo período, os problemas de visão de Joyce agravam-se a ponto de deixá-lo praticamente cego.
O breve comentário lacaniano sobre o "diagnóstico" conferido a Lucia por Joyce termina sustentando que o escritor "testemunha, nesse ponto mesmo, a carência do pai" . A não-simbolização dessa carência, a experiência real dessa falha é o que os psicóticos testemunham. Graças a uma biografia relativamente recente, é possível constatarmos que John Stanislaus, pai de Joyce, encarnava uma falta perante sua tradição familiar: a descendência que ele gera — diferente do que aconteceu com seus antepassados — não se concentra mais em um único filho, cuja exclusividade manteria intacta uma "orgulhosa e incomum linhagem familiar de sucessão de primogênitos homens" . Afinal, seu primeiro filho, apesar de ter sido um menino, falece poucos dias depois de nascido e, além disso, Joyce vai ser não só o segundo filho, mas também o mais velho de toda uma série de irmãos.
Em si mesma, essa falta paterna não pode ser tomada como um fundamento para a loucura de Joyce. Todavia, no seu desdobramento sobre a estrutura das relações entre John Stanislaus e James Joyce, insiste uma determinada ambigüidade, que pode ser um índice do fracasso na simbolização do que Lacan chamou de "carência paterna": John Stanislaus recusava-se a sentir culpa por haver quebrado a sequência familiar que recebera como um legado e, ao mesmo tempo, tratava Joyce como filho único, embora ele fosse apenas o segundo e o mais velho sobrevivente entre vários outros que lhe sucederam.
Se John Stanislaus foi quem quebrou a sequência de que a geração de seus ancestrais tanto se orgulhava, Joyce será aquele que, ao longo de sua obra, cada vez mais intensamente, vai enfrentar e, sobretudo, suplementar a não simbolização de uma carência, de um furo encarnado pelo pai. Trata-se de um suplemento porque essa obra não se propõe a ser um símbolo que complementaria a falta paterna: ela se tece como um sinthoma que, tendo o pai como um pivô, permite a Joyce impor ao mundo seu nome e, assim, forjar sua própria versão do que pode fazer as vezes da paternidade . Gillet, a seu modo, já antecipava a concepção lacaniana da obra joyceana enquanto um sinthoma suplementar. Especialmente ao afirmar que essa obra vai, progressivamente, explorar e renovar "o eterno mistério da Criação, da Gênese, da Paternidade" porque Joyce encontraria, nesse mistério, "o fundo de tudo, o abismo mesmo da existência e da destinação" . Ao desdobrar, em sua obra, tal mistério, ao se servir dela para atravessar tal abismo, Joyce decompõe, no exercício mesmo da escritura, o domínio retórico com que seu pai procurou responder, a partir de uma recusa, a falha encarnada perante a tradição familiar. Afirmaria, portanto, que Joyce retoma e reconstrói, de uma forma bastante singular, e mesmo individual, o que Gillet lacanianamente designou como "enigma da geração e da transmissão do ser" .
Considerando que a simultaneidade entre a morte do pai e o desencadeamento da loucura da filha não deixa de fazer Joyce se confrontar com o que Lacan chamou de "carência do pai", me parece interessante evocar parte de uma carta que o escritor endereçou a Mrs. Weaver. Joyce lhe relata o último pedido que o pai lhe teria feito através de um amigo. Logo após mencionar essa solicitação, escritor vai fazer referência ao modo como a voz do pai o afetava: "parece-me que sua voz, de algum modo, entrou em meu corpo ou em minha garganta. Ultimamente mais do que nunca — especialmente quando suspiro" . A precisão "ultimamente mais do que nunca" reitera a imposição das palavras que, antes mesmo da morte do pai, já afetava o filho escritor: a morte viria apenas tal imposição. Por outro lado, considerando o agravamento dos problemas oculares de Joyce, talvez não seja excessivo evocar a proximidade fônico-escritural entre sight ("ver", "visar") e o verbo sigh que Joyce usa para ressaltar como a metamorfose da voz paterna afeta o filho, sobretudo, quando ele suspira.
Assim, a morte de seu pai, a perda progressiva de sua visão e a "clarividência" atribuída à Lucia vão confrontar o corpo — e não apenas a obra de Joyce — com a dimensão impositiva desses objetos que Lacan chamou de "voz" e de "olhar" e que, em uma estrutura psicótica, podem comparecer como índices reais e decisivos para a consolidação de um diagnóstico. Importante ainda destacar que, efeitos corporais menos intensos, Joyce chegou a mencionar, para Eugene Jolas, como a voz do pai lhe era imposta a partir do vazio evidenciado com a morte deste último: "'eu escuto meu pai falando comigo" . Poucos anos depois, durante uma das piores crises da filha, Joyce apresentará o que o próprio Ellmann chamou de "alucinações auditivas" e estas vão ceder logo após o acatamento da recomendação médica de que o trabalho com Finnegans wake pudesse ser retomado .
Foi sobre esse seu último livro que Joyce, certa vez, disse a Mercanton que a loucura realizada aí lhe trazia tantas objeções porque as pessoas não concordavam que ele tivesse "traduzido em impressões auditivas as imagens do sonho, que pertencem à vista" . Em outros termos, em Finnegans Wake, a "loucura" foi ter dado voz ao onírico onde a noite dos neuróticos alucina os segredos que os loucos, por sua vez, expõem em plena luz do dia ou, no caso de Joyce, no clarão branco da página. Em um outro viés, o da "Paixão do Pai", o parasitismo da voz de John Stanislaus na garganta e no corpo do filho, a irrupção de alucinações auditivas durante uma das piores crises vividas por Lucia fizeram cintilar, no corpo mesmo de Joyce, a loucura, mas, agora, desamarrada dos escritos fora de si que ele compôs.
Sustentaria, por fim, que, no exercício e no uso de sua escritura, Joyce amarra a própria loucura enfrentando, com rigor e como poeta de seu próprio poema, a dimensão real da palavra imposta a sua vida e a sua obra, a sua loucura e a sua literatura. Portanto, juntamente com a linguagem, com a identidade fonatória, com a diferença das línguas, com a psicose da filha, com a voz e a carência do pai, o que Joyce, nos seus escritos, ao modo de uma Circe, dissolve e metamorfoseia são, também, as marcas de sua própria loucura. Por isso, seja a partir do que nos foi legado por seu fraterno guardião, seja em sua extensa correspondência, seja, por fim, nas tocantes lembranças que lhe foram escritas por sua própria iniciativa ou pelo vazio deixado por sua morte, não encontramos — antes do enigma formulado por Lacan — registros precisos sobre a loucura de Joyce.
Contrapondo a escassez desses registros à enorme quantidade de dados que se acumula a respeito de Joyce, a questão lacaniana sobre a loucura do escritor impõe-se como um enigma. Afinal, na tessitura formada, ao longo de seu processo escritural, a partir das palavras que lhe são impostas, Joyce localiza e, como é característico a todo procedimento enigmático, Joyce também cifra o gozo que, nos casos como o de sua própria filha, invadindo os corpos sem se deparar com alguma amarração, acaba reduzindo o alcance da transmissão dos escritos fora de si e gerados na estranha vizinhança entre a literatura e a loucura.

 

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